terça-feira, 27 de março de 2007

Escuta

Toda vez que escuto: 'eu te odeio', tem um sabor novo.
Ninguém diz isso assim, quando sente.

Ei, é bem pior que num curral!

Está na cara?
E quando não tem cara, está no corpo?
E quando não tem corpo? Hare, hare! Parece daquele jeito da televisão, mais rápido que os olhos, ilegal, tiro secreto, murro subliminar.

A imagem resiste, é bem pior que num curral.

Não precisa me explicar porquê a menina foi deixada com o pescoço ferido. E manchada de roxo. E se portava como um cachorro, e mordia, e espumava, e porque gritou para a mulher que repetia - 'O sangue de Jesus tem poder!' : 'cala a boca, sangue de Jesus é a puta que o pariu, cala a boca, me deixa em paz!'

O lugar era pequeno, sabe? Mas tinha muito alimento e boa parte da família estava presa ali, inclusive o irmão de seis anos, apavorado com a hipótese de a mãe decidir tornar-se heroína para nada.

E sua cena toda que quer se dizer contemporânea, bordada de celular, de e-mails, de virtuamorfose, só tem serventia pra me lembrar disso.

Era um triste como você: decidiu colocar um 38 na têmpora daquela virgem. Ela tinha que pagar o preço dos perversos, da tripa dos desconhecidos, das invasões bárbaras, da inclemência estúpida e repetitiva: ah, deixo rastros rituais, fofa!

E o tal de você (ou de um outro, ou de tantos iguais) sentiu ódio porque alguma coisa ali, que tem um cheiro e tanto, é inquebrantável.

É? Sal grosso onde, querido? Ah, era mais uma...

Antes que sem trincas, que já passei de colagem a partitura, eu, monstro do pictórico, do escandinavo, dos crimes de fogo, das fotos rasgadas, das caixas pretas do inominável, antes, antes de doendo, eu olho você.

Eu - principalmente - olho você.

Só quebra o que tem ossos, o que tem vidro.

E eu morreria antes de você. E eu poderia entregar meu coração para que a criança fosse feliz. E eu seria a carnação da vida se tornando vida, húmus, o que, caríssimo (caro heim?), você não vai mais querer conhecer.

Afinal, excessiva. Sorte de quem não fere.

Estou na faca que te atravessa, mas sou seu único remédio.

Ostensivamente olho.

E você não entende porque isso te faz mal.

Você odeia.

Parte o espelho. Por isso o sangue na ponta dos dedos, aquele que você lavava no hotel de luxo.
Reparte meus membros entre os seus e diz que é melhor se afastarem, que sabe o que está dizendo, que trabalha com gente assim e que já basta.

Sim, basta.

Você me odeia.E me entrega todos os seus medos, e não se dá conta.

Quanto a mim, as manchas não saem. Só da sua vista prejudicada. Aquela lógica simplista (agora sua) de que basta que goze, que chupe, que escorra.

Estou viva.
Adianto: não sou melancólica.
Você não pode me matar.
Já tentaram antes, como estou dizendo.
E a película que adere está indisponível para nós dois.

Parece graça?

O tempo nos confere outros diagnósticos.

10 comentários:

Anônimo disse...

Impressionante como me vejo, meio nua, na sua ficção. Algumas vezes é tão próximo que preferia não entender algumas partes, não tão bem... Excessiva, né? Ah, deve ser por isso! Que bom que vc escreve e mostra aqui, Bel!

Anônimo disse...

A ferida aberta no coração jorra sangue já preto, coagulado... só entende quem já viveu! A criança ainda existe em algum lugar que não sabemos,mas tá dentro da gente. Alguns estímulos podem despertá-la de novo, não sei se tão pura pois é a lógica do Karma...

Anônimo disse...

lindo bel. tô gostando do seu blogue. já linkei no meu também. até que enfim. beijos.

Anônimo disse...

Cada um no seu aprendizado... Visão de conhecimento. Tenho tido muito cuidado com o sentimento, principalmente dos outros. Bjos.

Anônimo disse...

Lindo. Amar. Odiar. Respirar. As trilhas da vida, vista pelo topo. Pelo olho do louco. Lindo mesmo Iza! Beijos Tout

Anônimo disse...

(suspiro)

Anônimo disse...

É, Izabel, é bem isso, mesmo. Só sabe quem já amou e odiou. Um beijo

Anônimo disse...

Falou de ódio falou de amor nas beiroladas. Pesado, mas dá o recado.

Anônimo disse...

a primeira nota tem de ser afinada. a partir dela é criado um rosto para as coisas. ódio é tabu. falar do ódio é sempre uma coragem.

Anônimo disse...

li e lembrei do João. 'natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma' e a gente recicla, doidamente