terça-feira, 27 de março de 2007

Um dia comum

para Bia Castro


Um gato passou entre minhas pernas com sua escuridão. Na sala estavam os interiores de um pombo. Assustaram-me um pouco.
Cheguei mais perto para observar seus olhos: a centelha dos selvagens ainda estava lá. Aproveitei para respirar o viço verde de florestas.
Acendi as luzes de toda a casa. Era a luz que acentuava as outras cores e delimitava o preto.

As clareiras:

1-Apesar de tudo, eram quase imperceptíveis os alívios da lâmpada elétrica, mas eu não gostaria de viver sem elas.
2-O meu sexo: parecia-me guardar ali uma certeza de encontro e um brilho particular para amor ou uso. Mas eu não saberia quem usaria quem e quem é uma palavra para alguém.
3-Nunca soube a diferença entre alma e coração e não me agradava pensar em alma como atributo do pensamento. E nem como espírito, espírito podia ser fantasma, e eu tinha medo de fantasmas.
4-O olho do meu gato: ele provava o prazer da abstração. Era definitivo e cuidaria de mim, a despeito de qualquer surpresa. O gato era minha filosofia, meu sossego. Também eu cuidava dele e pedia que a melhor ração lhe fosse oferecida, em nome de nosso profundo entendimento e afeto.
5-Eu poderia subir, rodar e descer entre tecidos, como um gato humano, conhecendo distâncias e proximidades, brincando com tudo o que meu corpo me deu. Não estava sozinha nisso: além de mestres, eu tinha amigas, amigos, e algumas pessoas paravam para ver o desafio e a alegria de lidar com ele. Depois se contentavam com a poesia daquela imagem.

Entre todas as minhas lembranças, algumas estão em meu relatório de riquezas do olhar:

1-A conjunção entre as noites e os dias (já foi a um observatório? a gente vive sob gigantes que não nos pedem nada);
2-As sombras e as luzes (os gatos ensinam isso muito bem e o sol é uma percepção a partir do espaço ou uma moeda antiga).

Isolada aqui neste quarto de computador procuro por você, meu amigo. Meu pai e a namorada acham que me quer, mas não acredito. Enquanto me concentro lendo as mensagens, o riso e a dor me rondam, e ambos estão a uma mesma distância da minha cadeira. Funcionam como um leque espanhol com o qual me abano serenamente, pois onde moro faz calor, e, à noite, chove sem novidade ou prisão.
Levanto-me para buscar um copo d'água e dou de cara com meu pai. Ele me abraça, sorri, conversamos e tomamos um café. A vida é boa porque é simples, não a conhecemos e estamos aqui.

Minha gata retorna e percebo que sente fome, apesar de seu silêncio impecável e uma maneira luminosa de ser preta como a noite de uma cidade que não tem fim em nós.

11 comentários:

Anônimo disse...

estou por aqui lendo vc bel bjos...assim que voltar vou Bat vc

Anônimo disse...

... beleza de textos e este então!

Anônimo disse...

Tenho a sensação de passar pela intimidade de uma mulher, às vezes de uma criança, uma criança atenta.

Anônimo disse...

Sem rigidez e limite entre a filosofia, poesia ou inspiração, pausa súbita para respirar hálito interior. Muito bom.

Anônimo disse...

q força gravitacional faz girar a vida em torno! vc fala de um mundo q eu só imagino. delícia satisfazer (atiçar) a curiosidade masculina. bj

Anônimo disse...

Vc cuida muito bem das palavras, que são escolhidas com cuidado! Com o medo de fantamas me arrancou um riso, e hoje isso é coisa pacas! Gostei muito.

Anônimo disse...

Maneira luminosa de ser preta como a noite... pura poesia! Adorei!

Anônimo disse...

Esperei que acontecesse alguma coisa. Depois fui acompanhando as palavras, elas conduzem para dentro.

Anônimo disse...

Que lindo!

Anônimo disse...

Li várias vezes. Uma finura de texto!

Anônimo disse...

isso é pra mim.


amei.